segunda-feira, 28 de agosto de 2006

"O HORROR...O HORROR"

Francis Copolla, sobre quem já falei aí em baixo , está terminando novo filme, depois de ficar desde 1997, sem dirigir e sem aparecer.
Por conta do lançamento do pacote de DVDs "Apocalypse Now - The Complete Dossier", apareceu para as coletivas.
Li isso hoje na Folha e o que me chamou a atenção foi uma declaração dele sobre os filmes de guerra em geral:
"Todo o filme de guerra é um filme anti-guerra, pois descreve incidentes horríveis e o mais profundo de todos, a morte de uma pessoa jovem".
Quando li esta frase, imediatamente lembrei dos primeiros quinze minutos de "O Resgate do Soldado Ryan". Nada me impressionou tanto como estes poucos minutos de filme. Aquelas cenas me deixaram completamente chocado. Spielberg, inteligentemente, usou a câmera subjetiva, sem o "steady-cam" - aparato que estabiliza o movimento, permitindo que o camera man, ande ou corra filmando sem tremer - de forma que as cenas ganham uma credibilidade de reportagem da CNN. É como se a gente estivesse em plena praia de Omaha, na Normandia, no meio daquele inferno. Enquanto Copolla passa uma atmosfera de horror, em Apocalypse Now, mas sem ser explícito, Spielberg opta por uma imagem despudorada, crua. Embora esta escolha pudesse levar a uma violência gratuita e apelativa, isso não acontece. A violência extrema realmente faz parte da guerra. O comportamento dos soldados frente à seqüência de mutilações é absolutamente profissional. Nenhum entra em desespero ou parece chocar-se com a morte bárbara do companheiro ao lado. O médico do pelotão vai passando em revista uma seqüência de corpos inertes, rastejando pela areia com as balas zunindo sobre sua cabeça e burocraticamente orienta um soldado assistente sobre o que fazer com cada um dos feridos - descartando os agonizantes - como se estivesse calmamente andando no corredor de um hospital.
Fica claro que aquela violência excessiva faz parte da lógica da guerra. É como se todos a esperassem. Ou os protagonistas de tamanha barbárie ficam tão anestesiados que parecem não se dar conta do horror que os cerca.
A força das imagens de Spielberg reside numa hiper-realidade. Ainda que seja uma hipérbole, o horror é tamanho que, mesmo descontando-se em muitos pontos a retórica do discurso cinematográfico, sobra muita tragédia para ser creditada à guerra real, como ela deve realmente ser. E, note-se, nesse primeiro momento do filme a carga dramática ainda não existe: não conhecemos os personagens, ainda não nos identificamos com sua humanidade nem com suas histórias pessoais, não estabelecemos nenhum vínculo de empatia com aqueles homens que possa nos fazer solidários com eles. Mal nos foram apresentados. Não sabemos ainda se têm filhos, irmãos, se deixaram suas mulheres ou noivas... Sua história ainda vai ser contada. Nesse momento, apenas as imagens - hiper-realistas - são os veículos do drama que se desenrola. O horror da guerra basta por si só, é trágico por si só, mesmo que ainda não reconheçamos a tragédia oculta na morte de cada soldado.
É por isto, por este horror sem limites, que "todo filme de guerra é um filme anti-guerra". Se cada mãe de cada recruta, de ambos os lados de uma guerra, pudesse ver filmes como esse, duvido que essa guerra aconteceria. Duvido que essas mães encontrassem algum argumento que justificasse a morte e a mutilação dos corpos de seus filhos.

quinta-feira, 24 de agosto de 2006

OUÇA O MEU CORAÇÃO...

Se você ouvisse o meu coração quando você sorri, tira o casaco, bebe água, abre a janela, senta no chão, folheia a revista, passa a mão no cabelo, entorta a cabeça, levanta da cama, fala baixinho, olha pra mim, morde a caneta, entorta a boca, cruza a perna, levanta a xícara, fala demais, veste o casaco, toma sorvete, ajeita a blusa, põe os óculos, chora baixinho, sobe a escada, lê o jornal, pede perdão, acende o cigarro, fecha os olhos, prende o cabelo, solta o cabelo, fica com raiva, olha nos olhos, fica séria, conta uma história, tira o brinco, brinca comigo, briga comigo, olha o relógio, fica com medo, chora de ódio, ri de nervosa, fica quietinha, deita de bruços, suspira fundo, bebe umas, canta no banho, deita de lado, treme de frio, fala alto, olha de frente, pede colo, grita de alegre, tira o vestido, pede silêncio, me abraça com força, dá gargalhadas, me telefona...

Se você ouvisse o meu coração... ía saber que eu te amo...

segunda-feira, 21 de agosto de 2006

MONDAY, MONDAY

Não sou o Garfield, mas tenho algumas semelhanças com ele. Adoro lazanha, sou gordinho (tá bom...gordo) e sou um gato. Além disso, sou muito inteligente e meio convencido (deu pra perceber?). Meu filho me disse um dia: "Pô, pai, você é muito ´seachão´...! Não achei nem no Aurélio, nem no Houaiss, nem no antigo Caldas Aulete, o que possa vir a ser "seachão". Mas, entendi o neologismo e montei meu próprio verbete:

seachão - cf. "se achão". Adj. m. Diz-se da pessoa que se considera muito linda ou inteligente.
Convencido. Presumido. Presunçoso. Vaidoso.
"Ele era insuportável. Um
verdadeiro seachão." "Foi tão elogiado que virou um seachão".
Etimol. Formado pela contração do pronome "se" e do verbo "achar", + suf. aumentativo "ão", como
na expressão "Ele se achava o máximo" (Ele se sentia o máximo). Graf.
Encontrada também nas formas "se achão" e "siachão".


Porém, tenho pelo menos uma diferença com o gato. Detesto mais os domingos do que as segundas-feiras. Nada é pior do que as 18 horas do Domingo. Baixa um estado de espírito - ou baixa um espírito mesmo - tão depressivo que a segunda-feira acaba ficando com cara, não diria boa, mas suportável. Pelo menos, se a gente está vendo a segunda-feira é porque não se matou no domingo. Não conheço nenhuma estatística de suicídios, mas com certeza deve ter maior incidência neste dia, especialmente no período entre dezoito horas e o começo do Fantástico.
Se você conseguir superar essa horinha, pode acordar na segunda, pôr o CD dos "Mamas & Papas" pra tocar e cantar junto:

Monday, Monday, so good to me
Monday Monday, it was all I hoped it would be....

domingo, 20 de agosto de 2006

LEMINSKI

Hoje não é nenhuma data especial referente ao Paulo Leminski. Pelo menos, acho que não.

Só que comecei a fuçar na estante e me d
eu saudades de ler o cara. Como tenho afinidade com a poética dele!!! Como podem tão poucas palavras emocionar tanto...?!!!

Pensei... "Vou colocar um poema lá no ´Crônicas´..." O difícil foi escolher uma coisa só. Achei esse, que tem tudo a ver com a minha dificuldade em começar a escrever aqui.


Vai com a assinatura dele. Mas foi isso mesmo que me aconteceu.


depois de muito meditar

resolvi editar

tudo o que o coração

me ditar


quinta-feira, 17 de agosto de 2006

NO MEIO DO CAMINHO TINHA UM DRUMMOND

Ok, tá bom. Todo mundo está lembrando da efeméride (arghhh!!!!). Dezenove anos da morte de Drummond.
Lembro quando ele fez 80 anos. Foi, logicamente, um acontecimento. A imprensa não parava de falar disso. Mil homenagens, etc. Numa entrevista declarou, não exatamente com essas palavras: "Não vejo razão pra tudo isso. Não há mérito nenhum em fazer oitenta anos". Concordei com ele, na época.
Carlos era assim..."gauche na vida". Enquanto todo mundo comemorava, ele não via graça naquilo.
Se estiver vendo essas comemorações do seu aniversário de morte, deve estar balançando a cabeça em reprovação. Se o cara já não via mérito em fazer aniversário de nascimento, imagine se ele iria curtir comemorar o aniversário de morte.
Tá, é uma data que remete, faz a gente lembrar da obra dele, etc. Mas, cá entre nós, a poesia do Drummond precisa de data para ser lembrada ou comemorada? E, se a resposta for afirmativa, alguma coisa está errada, não?
Então pára de ler isso aqui, vai na estante, pega o primeiro livro dele que achar e leia. O que? Não tem nenhum? Corre e vai comprar!

domingo, 13 de agosto de 2006

AINDA SOBRE PAIS E FILHOS

Recebi esta carta do meu filho menor. Pelas hipérboles ("do tamanho do universo") e pelos clichês ("meu herói"), quero crer que o texto não é dele. Com certeza, foi ditado pela professora, na hora de fazer a lembrancinha. Não que eu não mereça tamanho amor e consideração. Claro que mereço. Mas, tenho certeza de que, se já dominasse a linguagem escrita, Theo teria muito mais coisas a dizer; não só de admiração.
Isto me fez lembrar uma outra carta de um outro filho para seu pai. Só que esse filho é um dos maiores escritores do planeta. Chama-se Franz Kafka. Seu "CARTA AO PAI", foi escrito em 1919, quatro anos antes de morrer. É um amargo acerto de contas. Alguns trechos:

- "Querido Pai: você me perguntou recentemente por que eu afirmo ter medo de você. Como de costume, não soube responder, em parte porque na motivação desse medo intervêm tantos pormenores, que mal poderia reuni-los numa fala." *

- "...justo como pai você era forte demais para mim..." *

- "Você só pode tratar um filho como você mesmo foi criado, com energia, ruído e cólera, e neste caso isso lhe parecia, além do mais muito adequado, porque queria fazer de mim um jovem forte e corajoso." *

- "Não quero dizer que isso não estava certo...mas quero caracterizar...seus recursos educativos e os efeitos que eles tiveram sobre mim. Sem dúvida, a partir daquele momento eu me tornei obediente, mas fiquei internamente lesado." *

- "...esse sentimento de nulidade que...me domina...deriva da sua influência."*

- "Para mim, sempre foi incompreensível sua total falta de sensibilidade em relação à dor e à vergonha que podia me infligir com palavras e juízos; era como se você não tivesse a menor noção da sua força." *

Bem, Herr Herrmann Kafka devia mesmo ser um déspota e Kakfa devia sentir-se o próprio Gregor Samsa, depois da metamorfose.
Acredito que meus filhos não tenham essa imagem de mim. Se o texto do Theo é pouco espontâneo, a vivacidade, a escolha das muitas cores fortes e a energia do seu desenho dizem muito mais do seu sentimento pelo pai.

Mas, Freuds e Édipos à parte, lá no fundo, bem no fundo mesmo, todos temos nosso lado Kafka (Herrmann e Franz), cinzento e opressivo. Ainda bem que o amor predomina, bem colorido, cheio de arvorezinhas azuis, soizinhos cor de telha, coraçõezinhos amarelos, carrinhos vermelhos e bonequinhos sorridentes bem verdinhos.

* Ed. Brasiliense, 2a. edição, Trad. Modesto Carone

sábado, 12 de agosto de 2006

PRESENTE / AUSENTE

O vulto refletido nas lentes dos óculos, sou eu no momento em que apertei o disparador. O fotografado é meu primogênito, há uns 17 anos atrás.
A imagem é clichê; todo mundo já aproveitou superfícies espelhadas pra fazer composições fotográficas e estabelecer um diálogo entre a imagem fotografada e a imagem refletida. O efeito nesta é razoável, mas o que chama a atenção, hoje, pra mim é me ver atrás da câmera. O olhar do fotógrafo, ou de quem filma a cena, é sempre um olhar distanciado. Ou você documenta ou você protagoniza. Não dá pra fazer as duas coisas ao mesmo tempo. Se voce é a pessoa que fotografa, não vai viver aqueles momentos. Vai ver, mas não vai viver. Vai olhar, mas não vai sentir. Vai testemunhar, mas não vai estar. Acho que é isso que dá coragem a um correspondente de guerra, sem tirar o mérito que ele tem de cumprir seu dever. No instante em que foca o olhar pelo visor, é como se ele não estivesse ali, apesar das balas zunindo por perto.
Como o momento é infinitesimal e fugaz, você perde o bonde da história. Não adianta repetir pra sair na foto. Essa imagem é de um outro momento. Parecida, mas de um outro momento que, aliás, poderia nem ter acontecido, caso você sofresse um ataque cardíaco fulminante, por exemplo.
Há muito percebi isso. E, quando percebi, passei a sacrificar o trabalho de documentação para entrar dentro da cena e gravar registros afetivos. Posso dizer que saí ganhando. E sempre dá pra pedir pra alguém tirar uma foto de você com seu filho, abraçados, os dois sorrindo para a câmera, olhando na mesma direção, sem óculos escuros e sem câmera na frente dos olhos, pra que as almas saiam sorrindo na foto também.

sexta-feira, 11 de agosto de 2006

ONE FROM THE HEART


Depois de filmar Apocalypse Now, Francis Ford Copolla enlouqueceu (no melhor sentido) - ou já era louco (no melhor sentido). Trancou-se e escreveu, produziu e dirigiu uma sofrida crônica sobre corações partidos, amor e paixão.
One From the Heart (Do Fundo do Coração), lançado em 1982, foi massacrado pela crítica, não teve público nenhum e afundou financeiramente.
O filme é lindo, com um cenário propositadamente "fake", muito neon numa Las Vegas cenográfica, fotografia com cores saturadas e uma breguice proposital em tudo.
A trilha é uma das coisas mais lindas que já ouvi. Foi indicada para o Oscar, mas não levou.
Tom Waits, pegou todo o espírito de fossa - daquela dor de corno que mata ou gera assassinos - e fez melodias maravilhosas com letras que parecem ter sido escritas num guardanapo de bar.

-
"I´m just a scarecrow without you...
Baby, please don´t disappear
I beg your pardon, dear"

Canta como se tivesse bebido todas - e acho que bebeu mesmo - com aquela voz rouca e a dicção pastosa. Como contraponto, colocou a fala da personagem feminina na voz firme, cristalina e linda de Cristal Gayle. O diálogo sonoro dos dois é algo de arrepiar, de tanta dor e ironia:

- Tom: "Here comes the bride, and there comes the groom
Looks like a hurricane went through this room"

- Crystal: "Smells like a pool´s hall, where´s my other shoe
And I´m sick and tired of pickin´up after you"

No final da canção, depois de ela repetir em cada estrofe que está "sick and tired of pickin´up after you", ele manda a última fala.....impiedosa e sarcástica.

- Tom: "Take all your relatives and all of your shoes
Believe me, I´ll really swing when you´re gone
I´ll be living on chicken and wine after we´re through

With someone I pick up after you"

Embora seja um musical e tenha muita ironia e comédia, o filme traz, no subtexto, a dor da separação e a amargura da solidão que sobrevem a ela. A música de Tom Waits é um elemento fundamental na criação dessa atmosfera.
Copolla e Tom Waits têm algo em comum. Primeiro, são "gênios da raça". E são meio "marginais", no sentido de ficar "à margem" do fluxo comum. O casamento deles aqui só podia dar muito certo, a despeito dos que não gostaram, ou melhor, até por eles. Gênios e marginais detestam a unanimidade.


quinta-feira, 3 de agosto de 2006

ATÉ DEBAIXO D´ÁGUA....

Cabral e os que o seguiram trouxeram espelhinhos e outras modernidades do primeiro mundo, com a finalidade de seduzir, cooptar e dominar os moradores da Terra de Santa Cruz. Naquela época, Portugal era o primeiro mundo que viria, inclusive, a nos colonizar, como fazem hoje os Estados Unidos da América.
Desde então, os brasileiros somos fascinados por "gadgets" importados, cuja serventia, se bem avaliada, é nula.
Um exemplo recente é a incorporação de câmera fotográfica - de qualidade ruim- nos celulares. Um celular é um objeto de grande utilidade, mas sua função "câmera" é ridícula. A qualidade ótica das lentes é péssima, a resolução dos arquivos patética e as fotos obtidas com ele são, conseqüentemente, horríveis. Qualquer digital compacta - e barata - do mercado é infinitamente superior sob todos os critérios de avaliação. Por isso, todo mundo hoje tem uma digital compacta, por mais simples que seja. Então, pra que serve o celular com câmera? Por quê todos escolhem um celular com câmera acoplada, mesmo pagando pelo menos quarenta por cento mais caro por esses modelos? Mesmo possuindo uma câmera digital - melhor - e utilizando o celular apenas para o que ele foi feito: telefonar.
A resposta é difícil para nós, mas os especialistas em mercadologia a têm na ponta da lingua. E sabem, também, que o fascínio que tais brinquedinhos exercem sobre o consumidor compara-se ao fascínio exercido pela cascavel, antes de dar o bote em sua presa. O ratinho sabe que vai morrer, mas não consegue sair dali. Ficamos como ratinhos, hipnotizados na frente da vitrine, prontos a cair no bote do vendedor.
Mesmo que o chamado "valor agregado" não traga nenhuma utilidade, aquilo mexe com a nossa emoção de forma fatal. Há uma história verídica que demonstra bem como esses "argumentos definitivos" têm poder de modificar comportamentos.
Logo após a Segunda Guerra, a grande vedete da escrita era a caneta-tinteiro. Modelos elegantíssimos, como a Parker 49 (eram chamadas, como os carros, pelo ano de lançamento) ou a Montblanc eram objetos de desejo. Não só pela facilidade que a tecnologia introduziu, ao colocar a tinta diretamente no corpo da caneta, evitando que fosse preciso a cada momento molhar a pena no tinteiro, mas também por terem se transformado num símbolo de bom gosto e status social. O desenho desses novos instrumentos de escrita era clássico e elegante. Os materiais empregados na sua fabricação, quase artesanal, eram sofisticados: ouro, prata, laca, pedras preciosas, uma verdadeira jóia.
Foi nesse ambiente que nasceu a caneta esferográfica. Tinha muitas vantagens sobre as tinteiro. Não vazava e não sujava os dedos nem a roupa. Escrevia bem em qualquer superfície. Não entortava a pena - que não tinha. E, maravilha, era baratíssima e descartável.
Nessa época, as mercadorias iam para o interior do país através dos mascates, caixeiros-viajantes, que, de mala na mão, visitavam os comerciantes para oferecer e vender tais produtos.
Um desses caixeiros-viajantes chegou a uma cidade pequena do interior trazendo a grande novidade: a "ball pen", caneta esferográfica, que ainda não se chamava Bic. A "grande novidade" não fez nenhum sucesso entre os compradores. Por mais que o mascate se esforçasse, tentando convencê-los das vantagens - reais - da invenção revolucionária, os comerciantes reunidos torciam o nariz para aquele instrumento feio, de desenho pobre, feito em matéria plástica, como se dizia e que - absurdo! - depois de terminada a tinta, se jogava fora. Quem iria deixar de comprar uma Parker 49, uma Shaffer 51, uma Montblanc de laca preta com anel em ouro e pena também, para escolher aquela coisa fininha e sem graça.
Até que o vendedor teve uma idéia. Pediu que viessem com uma bacia cheia de água. Ninguém entendeu nada. Ele manteve o suspense. Quando a bacia chegou, colocou-a na mesa, pediu atenção dos presentes e mergulhou uma folha de papel dentro da água. Rapidamente, pegou a caneta e escreveu seu nome no papel. Retirou-o da bacia com o mesmo ar de orgulho com que o mágico revela a pombinha surgindo do nada, nas dobras do tecido colorido. A platéia ficou pasma, em silêncio. Uma caneta que escreve debaixo d´água...! Que prodígio! Fantástico! Vendeu o estoque.
O resto da história todos conhecem. A esferográfica virou um sucesso. Mas para que alguém vai querer uma caneta que escreve debaixo d´água? Ou, para que alguém vai querer um celular que tira fotos? Tá bom, alguma utilidade isso tem. O que incomoda é o fato de que avaliamos (e pagamos) as coisas (e as pessoas, também) não pelo que têm na sua essência (escrever bem, no caso da caneta e fazer uma boa ligação telefônica, no caso do celular), mas principalmente pelo que trazem de acessórios, supérfluos, dispensáveis.
Outro dia vi um anúncio em uma revista. O título era "Até debaixo d´água". Fazia propaganda de uma câmera digital que podia tirar fotos.... debaixo d´água!
Fiquei olhando para o anúncio, hipnotizado como um ratinho pelo chocalho da cascavel...