quarta-feira, 27 de setembro de 2006

MÃO DE OBRA TEMPORÁRIA

Olhou disfarçando... Tentava ser discreto. Aquele olhar desejoso, babão, não combinava com a sua posição. Ele era o "VP", "o cara", o inatingível, o "ninguém consegue nem chegar perto dele"... Mas como era difícil disfarçar...
Uma secretária temporária...! Não, não tinha esse tipo de preconceito. Esse não. Ela era subalterna e, claro, não era rica. Mas, e daí? Bom, tem aquele negócio de "assédio sexual". Lembrou do filme. A Demi Moore, gostosíssima, tentando abrir a braguilha do Michael Douglas e ele repetindo: "No...No...No...". Justamente o Michael Douglas que, diziam, tinha se internado pra tratar de "sexualidade compulsiva". Claro, Tom Sanders, o personagem, é que dizia não. Ele mesmo, o ator, devia estar gritando por dentro: "Yes...Yes...Yes...!!! Divertiu-se com a idéia. E lembrou outra vez do assédio no filme. A advogada dizendo: "Sexual harrassment is not about sex. It is about power!" O assédio era uma expressão de poder. Ele - o todo-poderoso - usando este poder para obter favores sexuais de uma subalterna. Isso dava processo feio. E, pior que o processo, acabava com a carreira dele.
Esqueceu disso na mesma hora em que ela inclinou o tronco pra apanhar a caneta. A blusa abriu o decote e mostrou os seios perfeitos, comprimidos por um meia-taça preto. Quando levantou, seus olhos viram os dele, fixos e vidrados no seu colo. Instintivamente levou a mão ao botão da blusa e tentou fechá-la sem sucesso. Ao mesmo tempo, ele desviou o olhar para a janela e comentou qualquer coisa sobre o tempo.
Como era difícil resistir ao desejo por aquela mulher! Ela tinha uma mistura explosiva de inocência e sensualidade. O sorriso de uma criança, franco e brincalhão, mas o olhar lascivo de uma capa da Playboy. Um olhar que disparava fagulhas atingindo da pele até o sexo. Uma ondulação no caminhar. Uma coisa qualquer de magnetismo. Uma discrição tímida que provocava mais ainda a vontade de chegar perto. Porém, o mais difícil era resistir ao perfume. Não era perfume; era o cheiro dela. Um cheiro de mato, de terra molhada, um cheiro meio úmido e selvagem. Aquele cheiro drogava o cara. Aquela essência penetrava narina adentro até o cérebro e liberava todos os tipos de mediadores neuro-químicos do tesão: aquele tesão que entorpece a razão e deixa o cara irresponsável pelos seus atos, inclusive o ato sexual. Apesar de tudo, ele reprimia. Mas como era difícil!
A moça tinha sido colocada no lugar da D. Neuza, sua assistente há 16 anos, senhora solteirona de uma eficiência germânica. Fora preciso dar-lhe férias e o RH mandou a mocinha. Já no primeiro contato, sentira uma sensação esquisita. Chamou pelo interfone, com aquele tom de comando que usava com todos. Quando ela entrou na sala, ele demorou pra tirar os olhos do relatório e quando o fez, a primeira coisa que viu foram os saltos altos. Foi levantando o olhar vagarosamente. O "travelling" foi revelando aos poucos um corpo esguio, muito alongado, de porte elegantíssimo. Vestia uma saia na altura dos joelhos presa, pela cintura estreita, a um contorno de quadris volumosos mas em harmonia com o resto do corpo. Os seios eram também fartos, mas sem exageros e a linha dos ombros, muito largos, de perfil arredondado, dava-lhe uma nobreza impressionante na silhueta. Porém, o que chamou sua atenção de forma definitiva foi o desenho do pescoço. Aquilo realmente o impressionou: era muito alongado, seguindo o padrão do resto do corpo, mas também largo, de estrutura forte. Como uma pilastra sólida e firme, parecia tirado de um quadro de Modigliani. Sustentava um rosto de desenho quadrado, mas delicado, com uma linha bem marcada e ângulos mandibulares salientes. O cabelo curto, deixava a nuca totalmente aparente. Quando ela se virava para sair, os olhos dele se fixavam justamente ali e geravam todas as fantasias possíveis.
Precisava de alguns momentos para voltar a se concentrar no trabalho e muitas vezes durante o dia, surpreendia-se desatento, olhando para o nada, imaginando coisas. Passou a chamá-la pelos motivos mais fúteis. "Fernanda, poderia por favor trazer um clipe de papel?" "Fernanda, tem um grampeador aí?" Qualquer coisa que a fizesse entrar na sala. Começou a ficar preocupado. Nunca agira daquela maneira. Um dia o Tavares, diretor financeiro, comentou: "Mas essa sua secretária é gostosa, hein". Olhou com ódio para ele. Onde já se viu, fazer esse tipo de comentário. Deve ter mostrado isso, porque o Tavares abaixou a cabeça e ficou com cara de quem não entendeu nada. Eles tinham uma relação amigável e até íntima. Ficou mais irritado ainda por perceber que, com aquele comportamento, dava a maior bandeira. Mas, como resistir?
Chegou à conclusão de que estava pisando em terreno perigoso. Não era mais criança. Achou melhor trocar a moça por outra temporária. "Fernanda, por favor mande a Dominique do RH, vir até a minha sala." Quando a diretora entrou, pediu que ela substituisse a funcionária. "Por quê, Gustavo? Ela não está dando conta?" "Não, não é isso... é que... preciso de alguém com mais... experiência..." "Mas, Gustavo, que temporária vai vir com experiência? Ela fez alguma coisa errada?" "Não , não". "Então. Só falta uma semana pra D. Neuza voltar. Aí tudo se normaliza".
Só nessa hora deu-se conta de que Fernanda ía embora e talvez nunca mais a visse. Esse pensamento deixou-o apavorado. Concordou e dispensou a diretora. Chamou a secretária e aí cometeu o maior erro da sua vida. "Fernanda, preciso de você para terminar a apresentação da reunião de quinta." "Pois não, Dr. Gustavo"
No final do dia, Fernanda entrou na sala: "Dr. Gustavo, estou à disposição." "Você sabe lidar com o PowerPoint?" "Sei, sim". "Então, por favor, sente aqui", e indicou sua própria cadeira. A garota deu a volta à mesa e sentou-se. Estava com uma saia preta, mais curta do que o que normalmente usava de forma que, ao sentar, deixou aparecer mais de um palmo de coxa. Ajeitou-se na frente da tela e abriu o programa. Gustavo inclinou-se por trás dela para acompanhar o trabalho e quando chegou próximo à sua nuca, uma onda de cheiro de mato o envolveu. Olhou para baixo e viu aquele pescoço. Da perspectiva em que estava, via perfeitamente o decote entreaberto e os seios redondos. Falou alguma coisa sobre a apresentação, bem próximo do ouvido dela, quase sussurrando. Fernanda virou o rosto para ele e seus olhos se encontraram a apenas dez centímetros de distância. Foi o sinal. Ele puxou sua nuca com a mão direita e os lábios se tocaram. Moles, quentes e úmidos. Fernanda não resistiu; pelo contrário, abandonou-se. Levantou-se lentamente sem descolar os lábios dos dele e passou o braço esquerdo por trás dos seus ombros, enquanto a mão direita tocava a coxa e iniciava um movimento ascendente, lento e suave. Um arrepio percorreu sua espinha e um formigamento atingiu seu sexo. Entregou-se...
Uma semana depois, quando saiu da reunião extraordinária que tratara da sua demissão, passou pela ante-sala do que fora seu escritório. Fernanda estava lá, linda, atenta ao que escrevia no computador, agora efetivada no cargo de secretária executiva do novo vice-presidente, o Tavares, o antigo diretor financeiro. Aquele que tinha achado a secretária temporária muito gostosa. D. Neusa não chegou a voltar das férias. Foi demitida por carta.
Lembrou outra vez da advogada do filme: "Sexual harassment is about power." Fernanda tinha todo o poder.

sexta-feira, 15 de setembro de 2006

VINÍCIUS TINHA RAZÃO

Comecei mal minha vida amorosa. Minha primeira namorada oficial, pública e notória era muito, mas muito feia mesmo. Isso talvez não tenha tanta importância, hoje. Mas, com quinze anos, uma namorada feia contava tantos pontos no índice de popularidade quanto uma namorada super bonita. Só que negativos.

Descobri isso da maneira mais sofrida. Vania até que era uma pessoa legal. Bem enturmada e até popular, por conta de uma personalidade bem marcante e expansiva. Mas, sabe aquela pessoa que é amiga de todo mundo, conhece todo mundo, freqüenta todas as turmas mas... ninguém quer namorar? Ela era essa pessoa. Quando disse feia não falei de alguém assim meio feinha. Era uma coisa que chamava atenção. Despertava até uma certa simpatia caridosa nas pessoas. Começa que era baixa. Mas muito baixa. Cerca de um metro e meio talvez. E gorda. Não gordinha... gorda, mesmo. Aquele tipo de obesidade que deixa a pessoa redonda, como uma bola. Pra piorar, não tinha quase pescoço, de forma que a cabeça meio que se unia diretamente ao tronco redondão, o qual, por sua vez juntava-se sem interrupção com as coxas grossas e tudo terminava no tornozelo estufado. Com esse contorno, parecia um boneco de neve: uma bolona grande inferior com uma bolinha menor em cima.

Nessa época, meu melhor amigo era um cara de prestígio irritante com as meninas. Além de rico, era lindo. Tinha olhos penetrantes de um azul entre o violeta e o azul piscina. Hipnotizavam! E ele sabia disso. Quando olhava nos olhos de uma menina que lhe interessava e fixava o olhar... acabou! Ademais, tinha uma personalidade exuberante, era expansivo e falastrão. Fazia todo mundo rir, com um espírito muito gozador e engraçado. Todas as meninas, inclusive as que já namoravam, ficavam fascinadas por ele. Nas festas, sua chegada era esperada. Quem estivesse lá dentro, ficava sabendo pelo movimento que acontecia entre as garotas. Umas olhando pras outras, sussurrando e rindo. Enfim, era uma covardia!

Tínhamos, claro, uma turma de garotões bem bonitos, como são todos nessa idade. Mas ele era especial. E, por ser especial, chamava tanto a atenção, puxava tanto os olhares para si, que não sobrava muito para nós outros. Entrar com ele numa festa era como não ir. Ficar do seu lado, era não estar lá. Uma vez atravessamos o salão, ele e eu, em direção a duas meninas. Cheguei perto da minha e disse: "Vamos dançar?" . Ela não respondeu. Não é que o barulho estivesse grande e ela não tivesse ouvido. Totalmente alheia ao meu pedido, encantada, ela simplesmente olhava para ele, ao lado, que falava com sua amiga. Depois de alguns longos segundos, voltou-se para mim e, como se tivesse acordado, meio constrangida, disse: "Claro, vamos". Era bem difícil se fazer notar com ele por perto, mas, nessa idade, ninguém é franco-atirador. A gente precisa da turma, dos caras, pra dar segurança. Estar com ele - além da amizade verdadeira, claro - era ter prestígio, eu pensava. Mas a verdade é que as coisas com elas, ficavam mais difíceis.

Nesse ambiente, ele conquistando todas e eu nenhuma, acabava conversando apenas com minhas amigas nas festas. E nada mais acontecia. Foi quando Vânia, ainda uma dessas amigas - por quem, obviamente, eu não tinha nenhum interesse - me convidou para ser seu par na segunda valsa dos seus quinze anos, dali a um mês. A festa de debutantes - naquela época e numa cidade pequena onde todos se conheciam - era algo muito sério. Um acontecimento que ninguém perdia. Só se falava nisso, dois meses antes e dois meses depois. A Vânia me pegou num momento de fraqueza. Estava arrasado porque minha última investida na Silvinha tinha sido recusada na lata. Convidar para a segunda valsa era praticamente um pedido de namoro. Não pensei e aceitei!

Meu amigo Caco (era o apelido do "Apolo"), não se conformava.

- Você é louco! Você é um imbecil!

- Por quê?!

- Todo mundo vai estar lá, meu. Você vai aparecer com ela numa festa e ainda vai dançar a segunda valsa?! Não acredito que você aceitou isso?! Você é burro demais!!!

Eu não entendia tanto barulho por uma valsinha e um namorico que, se não era nenhum grande romance, pelo menos me dava companhia. Não ficaria mais sozinho, só bebendo e conversando, com o pé na parede, durante as festas. Eu tinha uma namorada!!!

Então ele fez uma profecia: "Isso vai acabar com a sua reputação. Depois que você terminar com ela, não vai conseguir namorar mais ninguém".

Achei aquilo meio exagerado e, de resto, eu já não estava conseguindo namorar ninguém mesmo. Não dei muita bola. Comprei um lindo blazer azul-marinho com botões prateados e uma calça cinza claro com barra italiana virada. Emprestei camisa e gravata do meu pai e usei meu mocassin argentino. Estava o máximo, segundo o meu conceito. E iria ser destaque na festa. Imagine só dançar a valsa sozinho na pista, com todos (e todas) me olhando...!!!

Comecei a peceber a besteira que tinha feito já nos primeiros acordes do "Danúbio Azul". O pessoal fez aquela roda em volta da pista. Enquanto girava, via o povo rindo. Não, não estavam sorrindo. Estavam rindo, mesmo. Quase gargalhando. Me dei conta do ridículo daquele casal. Eu tinha só catorze anos, mas já media um metro e oitenta e cinco. Ela batia no meu peito. Podia olhar tudo por cima da sua cabeça. Precisava dançar meio curvado. Foi minha estréia...

Dois meses depois, tinha terminado o namoro. Fiquei três anos sem namorar ninguém. Que menina iria querer ficar com o cara que namorou a pessoa mais feia da turma. Pior; das turmas todas.

Minha sorte só mudou quando chegou à cidade, uma garota nova, linda. Ela não sabia de nada e a conheci numa boatinha do clube, assim que ficou sócia. Fui o primeiro que a tirou pra dançar. No dia seguinte, fiquei a tarde toda com ela na piscina, conversando. Quando as novas amigas revelaram com quem eu tinha namorado antes, ela já estava gostando de mim.

Era realmente linda essa menina, além de delicada e muito carismática. Era a versão feminina do meu amigo Caco, digamos assim. Conquistou tanto prestígio e popularidade quanto ele. E eu era o seu namorado! Nunca mais fiquei sem namorar, mas aprendi cedo como é construída uma reputação na sociedade das aparências.

Contudo, tenho de dar razão ao Vinícius : "As muito feias que me perdoem, mas beleza é fundamental". Notem que ele se dirige às "muito feias". E quando fala na "beleza fundamental" refere-se a todas as belezas da mulher, não só a um rosto lindo e um corpo fantástico. O pessoal, de sacanagem, destaca só essa frase e tira totalmente do contexto. Acho que é pra zoar com as "muito feias". Aquelas que não têm beleza nenhuma...


domingo, 10 de setembro de 2006

PHOTOPOST


tu és rosa...
eu sou azul...

Cores de mares!
se não ficares,
vou onde fores...
Pares de cores!

quinta-feira, 7 de setembro de 2006

PAIXÃO E MORTE DE UMA PAIXÃO

ATO I

O arfar trêmulo do peito que agoniza, produz o som resfolegante de quem correu quilômetros. No entanto ele está parado, sentado há horas na mesma posição, olhando através das paredes, além do horizonte, um horizonte de chumbo. A entrada do ar é difícil e chega a doer numa inspiração mais profunda, vã tentativa de fazer algum oxigênio carrear vida para dentro do corpo alquebrado e dolorido. Cabeça e ombros parecem suportar uma imensa pedra; o monólito negro da paixão esfacelada lhe curva a coluna. Dentro do peito oprimido, duas grandes mãos sufocam fortemente seu coração, procurando fazê-lo parar e, por isso, cada diástole não acontece, cada sístole bombeia apenas um fio de sangue escurecido pela respiração ineficaz. A pele, coberta de um suor pegajoso e frio, adquire um tom pálido, levemente azulado. Ele experimenta um ébrio torpor e, ao mesmo tempo, uma ansiedade explosiva e irrequieta; nas extremidades dos membros, um formigamento latejante quase os anestesia. Sente uma súbita vontade de gritar, vomitar bile, atirar vasos contra a parede. Mas o corpo entorpecido não esboça o mínimo movimento de um dedo mínimo. Não consegue nem mesmo levantar o braço para enxugar os grossos fios de lágrimas que escorrem dos olhos e das narinas, respingando seu colo ofegante. De vez em quando, pequenos tremores partem de dentro, de algum lugar e vão evoluindo em ondas centrífugas, atingindo a musculatura epidérmica, gerando arrepios e involuntárias contrações espasmódicas. Destes incontáveis epicentros, borbulham terremotos que sacodem o corpo semi-inerte, entregue à força primitiva de um vulcão em atividade máxima: sua pobre alma delira em convulsões e regurgita uma lava de fel e secreções incandescentes da paixão que se consome num fogo estrepitoso. Nunca pensou que tal emoção fosse sentida pelo estômago, mas é ali que as labaredas parecem produzir um ardor desesperado, dilacerante. Estranhamente, como que buscando um bálsamo, seu cérebro começa a resgatar, com incrível clareza, os instantes de paz e transcendência que vivera há - quanto? - tão pouco tempo. Dias, semanas talvez, o separam do paraíso em que estava e do inferno que agora vive... E...

ATO II

...Nunca sentira um estado de alma como aquele. Não havia diálogo, não havia idéias, não havia razão, decididamente inúteis. Apenas sensações...sonoras, olfativas, táteis. E - ao contrário de agora - uma ausência de peso, um levitar. Como se um campo antigravitacional estivesse permanentemente ligado. Fechara os olhos e chegara a ter miragens. Suas visões eram de nuvens passando em movimento lentíssimo sobre profundo e infinito azul, como um filme rodado em câmara lenta, mas sem o som das turbinas de um possível avião que lhe desse essa perspectiva visual. Como a bordo de um planador, seu espírito voava um vôo autônomo. Havia o silêncio reconfortante de um crepúsculo no campo e, bem longe - em tom baixo mas, perfeitamente audível - uma melodia não identificada e, no entanto - agora - inesquecível. Não , não era apenas uma melodia. Eram canções, muitas canções e vinham de um mesmo CD que rodava incessantemente, repetindo-se . Nenhum dos dois fazia qualquer menção de trocar o disco. Pouco importava. Era apenas música incidental, música de cena, música de fundo. A verdadeira música eram os sons. Baixos, baixíssimos, ouvidos apenas por eles, respeitando o silêncio que envolvia a sala penumbrosa de uma luz cálida. O ruído da inspiração do ar simulava uma suave brisa penetrando, lenta, minúsculas cavernas e assoviando baixinho quando formava pequeninos turbilhões nas concavidades que forçavam seu retorno. A expiração, ao contrário, vinha mais rápida e vigorosa; o jorro de ar, lançado de uma só vez, era, às vezes, acompanhado de mínima vibração das cordas vocais, criando uma nota pálida que fugia da garganta, como eco, pelos lábios entreabertos. De vez em quando, um gemido escapulia do peito de cada um e se transformava num sussurro - apenas a inútil tentativa de articular palavras que nunca saiam inteligíveis, por desnecessárias ou por serem abandonadas em algum desvão, no meio do caminho entre o coração, o cérebro e a língua, já enovelada com a outra, duas cobras do Paraíso perdidas no seu balé místico e pleno de significados e gozos. Falar prá que, se o silêncio destes ruídos dizia tudo o que era preciso? O farfalhar dos tecidos criavam imagens de folhas batidas pelo vento do Outono e traziam junto o seu clima de frescor, apenas para comprovar a tepidez dos corpos... E...

ATO III

...Um calor de forno crematório emana de seu interior, ao mesmo tempo em que a janela escancarada - no desvario de fugir da opressão - sopra um hálito gélido de ar, eriçando sua epiderme e trazendo-lhe tremores febris. Sua cabeça dói e pulsa na freqüência com que seu coração busca injetar sangue em seu cérebro fatigado de tanto procurar aquele paraíso perdido. Debalde; ele sabe disso. Sabe desesperadamente que sua memória não foi capaz de guardar nenhuma daquelas emoções.
Não estão no córtex, no lobo central ou no hipotálamo. Na verdade, não estão em lugar nenhum de seu corpo, nem ocultas em nenhuma fibra de seu coração ou encobertas em qualquer vão de seu sistema sensorial, embora todo ele tivesse tomado parte daqueles momentos.
Eis a terrível verdade! Aquela paixão imensa, sentida em cada miserável célula de seu corpo, percebida em cada órgão, manifesta em cada gota de suor, em cada lágrima de emoção vertida pelos olhos extasiados, em cada suave toque de seus dedos, aquela chama de luz intensíssima, aquele arrebatamento insensato e, ao mesmo tempo, pleno de paz, pertencia ao Tempo, este deus cruel e intolerante, que nos leva, implacável, todos os instantes vividos e por cujos dedos se esvai nossa vida lastimosa. Chorando, agora, um choro convulsivo e desesperado, ele percebe - na sua grande solidão e impotência - que jamais a terá de volta. Nunca mais aquela paz dos crepúsculos campesinos, nunca aquele silêncio melódico e farto de ruídos somente percebidos pelos corações apaixonados. Nem, tampouco, os perfumes, o calor, o toque eletrizado. E, nunca mais a viagem por entre as nuvens claras do céu da paixão, a viagem que pacifica o espírito e apascenta as almas apaixonadas. O deus Tempo, levou tudo e não deixou um registro sequer, nada que pudesse evocar um milésimo de segundo daquela sensação.

EPÍLOGO

Assim morre uma paixão. Assim como veio, do nada, trazida apenas pelo Tempo, deixada alguns instantes para que duas almas, escolhidas a esmo, pensem que também são deuses e que venceram os segredos da Vida e da Morte, conquistando a Eternidade. Não, minhas pobres almas desenganadas! Vivam como deuses estes mínimos e raros instantes, por que, logo, logo, perderão altitude e, de repente, em queda livre, vão estatelar-se, com estrondo terrível, sobre a sua dura e limitada humanidade. É-lhes permitido apenas...chorar.
E excretar - sob a forma dessa água salgada, temperada pelo fel do desengano - aquela porção perdida que o Tempo levou, numa espécie de morte a prestação.

domingo, 3 de setembro de 2006

OUTONOS

No hemisfério sul, o Outono é uma estação virtual; praticamente não existe. É caracterizada por dias limpos sem nuvens, céu azul intenso e sol brilhante. Nessa época, seus raios atingem a atmosfera em ângulo agudo, gerando uma luz oblíqua que ilumina os objetos meio de lado, produzindo sombras que destacam os contornos e os relevos, além de deixar as cores mais saturadas. É muito bonito! Além disso, as temperaturas ficam amenas. É a estação de que mais gosto.

Porém, estranhamente, tenho uma fascinação especial pelo Outono do hemisfério norte, embora nunca tenha visitado nenhum país de lá, nesta época do ano. O Outono de que gosto é o que vejo nos filmes e nas fotografias, com aquela luz maravilhosa, frio intenso mas suportável, que convida ao vinho ou à lareira ou aos dois. E as lindas cores do Outono setentrional!!!!! Principalmente das folhas; vão do amarelo claro esmaecido ao marrom avermelhado intenso, passando por todas as nuances intermediárias.

O que me intriga é eu gostar desse ambiente, sem nunca ter sido envolvido de verdade por ele. Ou será que já estive lá em outra existência? Digo isso porque o sentimento que tenho sobre este Outono é de estranha nostalgia. É como se já tivesse passado por isso.

No Brasil, nossos ciclos são medidos pelo ano civil. Usamos como referência, o final do ano, o Natal, o Carnaval, os feriados, as datas. É uma medida de tempo que vem do calendário gregoriano: uma convenção. Os habitantes do norte, ao contrário, utilizam as estações, muito bem marcadas lá. Assim, eles dizem: "no Verão vou a tal lugar", "encontrei-a no Outono passado", "quando a Primavera chegar vou fazer tal coisa". Essa maneira de "medir" ou estabelecer uma referência temporal pelas estações utiliza um ciclo natural. Quem sinaliza o passar do tempo são os fenômenos da Natureza: a florescência das plantas, o comportamento dos animais, a luz, a duração dos dias e das noites... Cada estação tem uma "personalidade", um perfil muito próprio e diferente da sua antecessora ou da que a segue. E, acredito, esse "jeito" de cada estação, acaba por induzir um perfil nas pessoas, de tal forma que elas mudam sua maneira de ser e se comportar. No Verão, são de um jeito; no Outono, assumem outra dinâmica. Coisas que não as atingem na Primavera, podem mobilizar grande emoção se ocorrerem no Inverno.

Como baseia-se num ciclo natural e não numa contagem de tempo inventada, essa forma de relacionar-se com o tempo é muito mais verdadeira para o homem, de resto um ser atavicamente ligado à Natureza. Penso que a consciência do fluir do tempo através dessa medida encontra muito mais eco na alma humana, é muito mais harmoniosa com o tempo interno - o tempo necessário para processarmos mudanças interiores importantes. Talvez por não agirmos assim, tenhamos sempre uma sensação de estranhamento com o passar do tempo. Sempre achamos que foi rápido demais ou longo demais. Muitas vezes "agendamos" tarefas ou acontecimentos das nossas vidas que acabam ocorrendo inoportunamente. Quando chega a hora daquela viagem tão esperada, "precisamos" ir, mas não estamos no momento certo. Aquele tempo não corresponde ao nosso tempo interno. Eu, pelo menos, brigo demais com o tempo. Muitas vezes sou obrigado a fazer coisas para as quais não me sinto preparado. Em outras, desejo ardentemente fazer coisas que ainda não são possíveis. Há uma permanente impressão de inoportunidade.

Ademais, percebo que o ato de fecharmos os ciclos apenas uma vez ao ano, como acontece no sul - sem as manifestações da Natureza que acompanham as mudanças de estação no hemisfério norte - é insuficiente para nos equilibrarmos.

Bobagem ou não, ainda vou dar um jeito de passar um Outono inteiro contemplando as cores das folhas lá do norte pincelando o chão. Só espero que haja tempo e que isso não ocorra já no Outono da minha vida.

sexta-feira, 1 de setembro de 2006

O ADVOGADO DO DIABO



Um dos filmes mais inteligentes que assisti foi "O Advogado do Diabo" (The Devil´s Advocate, 1997). Principalmente pelo roteiro. Os diálogos são de uma precisão cirúrgica. E, quando estão na voz de John Milton, o Belzebu, vivido por Al Pacino, são de um sarcasmo diabólico.
Já é uma ironia ácida colocar o demônio na pele de um advogado, "chairman" de um escritório jurídico, cheio de diabinhos travestidos de juristas. Exatamente aqueles que devem defender a verdade, a lei e, principalmente, a justiça.
Mas são as falas de Milton/Pacino que fazem deste filme um primor, a começar daquela, sempre repetida em vários momentos: "Vanity! Definitely my favorite sin." É pela vaidade, principalmente, que o diabo consegue seduzir suas almas. O homem renuncia a tudo - inclusive ao amor - para satisfazer sua necessidade de ser admirado. Nada é mais importante do que poder e prestígio perante homens e mulheres. Milton chega a oferecer a Kevin Lomax que se afaste de um caso importante, para dedicar-se mais à mulher (Charlize Theron, mais linda e competente do que nunca) que está seriamente doente. Ele recusa dizendo: "Sabe o que me assusta? Eu desisto do caso, ela melhora...e eu passo a odiá-la por isso."
O diálogo final entre Milton e Lomax, seu filho, é quase um monólogo onde Al Pacino arrasa, como sempre. Tem trechos memoráveis, como este:

"Let me give you a little inside information about God. God likes to watch. He's a prankster. Think about it. He gives man instincts. He gives you this extraordinary gift, and then what does He do, I swear for His own amusement, his own private, cosmic gag reel, He sets the rules in opposition. It's the goof of all time. Look but don't touch. Touch, but don't taste. Taste, don't swallow. Ahaha. And while you're jumpin' from one foot to the next, what is he doing? He's laughin' His sick, fuckin' ass off! He's a tight-ass! He's a SADIST! He's an absentee landlord! Worship that? NEVER!"

Numa tradução livre, não literal e resumida:

"Vou lhe dar uma pequena informação de bastidores sobre Deus. Deus gosta de assistir. É um gozador. Pense nisso. Ele dá instintos ao homem. Dá esse dom extraordinário e então o que Ele faz, juro, para seu próprio divertimento? Estabelece as regras em sentido contrário. É a 'pegadinha' do século. Olhe, mas não ponha a mão! Toque, mas não experimente! Prove, mas não engula! E, enquanto você fica pulando de um pé para o outro, o que ele faz? Fica rindo! Fica disfarçando, com se não tivesse nada a ver com isso. É um sádico! Venerar isso? NUNCA!"

Vamos e venhamos! Sem querer ser o advogado do diabo (não dá pra concordar com a sua falta de ética, nem com seus métodos de aliciamento, nem com seus objetivos escusos, etc.), mas não é que seus argumentos têm alguma lógica... Nossa luta para sermos virtuosos é uma eterna guerra contra nós mesmos. Engula, engula, engula e tampe bem tampado.