HARMONIAS DIVINAS
Um dos instrumentos mais lindos que conheço é a voz humana.
O canto - a melodia executada pela vibração das cordas vocais - é alguma coisa de divino.
E dentro das modalidades de canto, a execução à "capella", sem acompanhamento instrumental, é uma das coisas mais tocantes e emotivas que se pode ouvir.
Sabendo disso, desse efeito explosivo na emoção, a Igreja desde sempre utilizou o canto como forma de propagar a palavra de Deus.
Na Idade Média, as primeiras formas de canto litúrgico foram baseadas no canto grego e, por volta do século IX, surgiu o canto gregoriano, assim chamado por ser atribuído ao Papa Gregório, que o teria incorporado definitivamente à liturgia.
O canto gregoriano caracteriza-se por ser entoado em uníssono, isto é, uma monofonia. Todo o coro emite a mesma nota da melodia, na mesma altura, sem nenhum intervalo. Isso se prestava muito para a veiculação dos recitativos e orações. Dessa forma, a palavra era o elemento mais importante da canção.
Durante muito tempo, a Igreja - poderosíssima na época - legislando sobre tudo, proibiu a polifonia. A harmonia gerada pela polifonia - emissão de duas ou mais notas com intervalos de terças, quartas ou quintas, era considerada frívola, herege e lasciva. Um obstáculo à compreensão da palavra de Deus veiculada de forma monótona pelo canto gregoriano monofônico.
Felizmente, Deus era mais sensível e inteligente do que a Igreja e mandou a Renascença. Com ela, a polifonia ganhou espaço a tal ponto, que a própria Igreja resolveu aderir à nova moda, já que os fiéis preferiam muito mais a música polifônica, já totalmente ambientada nas canções profanas.
O encontro de notas formando acordes, especialmente quando emitidas pela voz humana, é capaz de levar nossa alma a estados de verdadeira elevação, independente do caráter sacro ou profano do canto.
Tenho verdadeira adoração por harmonia vocal. Penso que é um dos trabalhos mais lindos e difíceis que se pode fazer em música.
Existem, hoje, muitos conjuntos e grupos especialistas nesse tipo de trabalho. Pra ficar apenas nos contemporâneos, cito o Take 6 e o Manhattan Transfer. No Brasil, tivemos há algum tempo, o Quarteto em Cy e o MPB4. São muitos mesmo.
Porém, existem dois grupos cujo trabalho acho pouco conhecido aqui no Brasil, embora um deles seja brasileiríssimo.
O primeiro é um conjunto italiano chamado NERI PER CASO. Tem um trabalho precioso e original que soma harmonia vocal com percussão bucal e corporal. O resultado é absolutamente criativo e cheio de personalidade. O baixo funciona como o verdadeiro instrumento e, em alguns momentos, é difícil acreditar que sejam apenas vozes o que ouvimos ali.
Deixo aqui dois exemplos do virtuosismo desse pessoal. A primeira canção chama-se CENTRO DI GRAVITA PERMANENTE e a segunda é a versão mais saborosa que já ouvi de WHITE CHRISTMAS, que considero a mais linda canção popular americana sobre o tema. Clique nos links e ouça. Vale muito a pena.
O outro grupo tem uma história interessante. É o brasileiro TRIO ESPERANÇA, que nos tempos da Jovem Guarda, cantava bobagens infantis como a "Festa do Bolinha" e a ridícula "Filme Triste". Quem tem menos de quarenta e cinco anos e não conhece essas músicas não deve procurar conhecer, nem por curiosidade. Acontece que, após o fim do grupo, sua cantora mais talentosa , Evinha, fez uma carreira solo de relativo sucesso cantando uma linda canção de Antonio Adolfo e Tibério Gaspar, chamada TELETEMA, além da delicada CASACO MARROM. Porém, Evinha estourou mesmo defendendo a maravilhosa CANTIGA POR LUCIANA, de Paulinho Tapajós e Edmundo Souto, que ganhou o 1º lugar no IV FESTIVAL INTERNACIONAL DA CANÇÃO, em 1969.
Evinha partiu para uma carreira internacional e acabou se casando com o pianista da orquestra de Paul Mauriat - com quem excursionou pela Europa e Japão - e fixou residência na França. Ficou muitos anos sem cantar, mas um dia resolveu reviver o Trio Esperança. Chamou duas de suas irmãs, Marisa e Regina, e gravou dois Cds à capella. É um trabalho de harmonização vocal fantástico, com arranjos sofisticadíssimos e dificílimos. Não teve muita repercussão no Brasil, mas parece ter feito mais sucesso na França. A amostra é a jobiniana ÁGUAS DE MARÇO. Sem comentários.
Pra terminar, a segunda música do Trio Esperança que deixo aqui, é um presente para um lindo casal de amigos. Ela, como a Evinha, é brasileira e, também como a Evinha, casou-se com um francês. Chama-se Gabi e é a autora do lindo blog Quase Vida. Ele é o Gaël, grande fotógrafo, como vocês podem conferir, clicando aqui. Ambos estão ansiosamente esperando a pequena Flora, que deve nascer em breve. Chama-se LA LUNE EST MORTE - uma canção infantil, cantada em francês, por brasileiras. Penso que a Flora vai gostar de ouvir. Também estou ansioso pra saber. Gabi e Gaël, depois me digam se acertei.
Ouvindo essas quatro canções à capella, com essas harmonias vocais, fico pensando como a Igreja pôde, por tanto tempo, considerar a polifonia coisa do demo...
Era a Idade das Trevas, mesmo.