quarta-feira, 26 de julho de 2006

MATILDE

Quem vê o semblante suave, com o sorriso calmo e olhar pacífico, não imagina o quanto ela detestava ser fotografada. Suas fotos antigas, ainda moça, traziam uma mulher ereta, com o cenho carregado e a boca crispada. Era uma mania dela não se deixar fotografar ou, se fosse inevitável, fazer uma cara zangada como a vingar-se do fotógrafo que pedia o indefectível sorriso. Ela não dava.
Por isso estranhei quando pedi o retrato já prevendo a recusa e ela concordou sem nenhuma condição. Nem acreditei. Mais do que concordar, abriu o sorriso e entregou-me a cara mais linda e doce que jamais vi. Por sorte a câmera estava pronta.
A fotografia capturou um momento fugaz no qual ela se permitiu - talvez pela única vez na vida - tirar a fantasia e mostrar sua alma carinhosa e plácida.
Contavam histórias
inverossímeis sobre ela - de como, para educar, batia nos filhos com vara de marmelo e dirigia a casa apenas com seus pigarros, tamanho o pavor que inspirava.
Nunca acreditei muito nisso. Não aquela senhora. Não aquela que, quando menino, todas as noites, antes de dormir, preparava-me um café com leite e um pratinho com muitos pedaços bem pequenos de pão já amolecido, cada um com uma lambida de manteiga. Não a mesma que tinha o condão de encantar todos os que a conheciam. Sua presença emanava uma atmosfera intensa de carinho e acolhimento.
Há uma história que mostra bem como Matilde envolvia as pessoas. Certa vez, recebeu uma família americana que havia hospedado um de seus netos. Os americanos não entendiam nada de português e os da família que falavam inglês faziam às vezes de intérpretes. Mas, isso era raro e a mãe da família passou dias, quase duas semanas, todas as tardes com Matilde. Obviamente, não se falavam. Comunicavam-se sabe-se lá como, mas o fato é que, sem nenhuma palavra, foram passando muito tempo juntas. Quando chegou o dia da partida e essa mulher foi se despedir dela, caiu num choro convulsivo sofrendo intensamente a dor da separação. Sem nenhuma palavra, Matilde conquistou o coração de uma estrangeira desconhecida e culturalmente avessa a quaisquer arroubos de sentimentalismo latino. Anos depois, a americana ainda mandava cartas - que precisavam ser traduzidas - cheias de palavras de carinho e saudade.
Isso era tão forte em Matilde que hoje, contemplando o retrato que fiz há mais de vinte e cinco anos, sinto sua presença, lembro da sua voz, do seu forte sotaque libanês, da textura aveludada da sua pele em que eu adorava passar a mão.

Feliz de quem tem uma avó como Matilde.

P.S. Depois de escrever esse texto, fiquei sabendo que hoje é o Dia da Avó. Sincronicidade.

Nenhum comentário: