sábado, 11 de novembro de 2006

BLACKBIRD

Blackbird singin´ in the dead of night
Take these broken wings and learn to fly
All your life
You were only waiting for this moment to arise



A Alessandra Alves, publicou um artigo intitulado "Que música marcou sua vida?". É um tema muito interessante e muita gente deixou seu testemunho lá.
Todo mundo tem uma relação afetiva com as canções, além do simples critério estético, do "gosto/não gosto". Música - assim como cheiro - é muito evocativa. Basta ouvir uma canção e lembramos de tudo o que acontecia enquanto ela tocava: as sensações que sentimos, quem estava lá. Toda a cena se apresenta como num filme.
Não deixei meu depoimento, pela dificuldade que tive em selecionar uma única canção que tivesse marcado minha vida. Foi impossível pra mim. Lembrei de umas doze, assim fácil, fácil. Qual delas seria "a" canção? Não soube dizer.
Mas esse exercício me fez lembrar de uma com a qual tive experiência muito estranha: Blackbird. A canção é uma das peças mais lindas, delicadas e pungentes dos Beatles. Aliás, é só do Paul. Foi composta com uma estrutura de música barroca, inspirada em Bach e nas técnicas de fuga e contraponto em que o alemão foi mestre maior. O arranjo é feito para violão, voz, pé e pássaro. Explico. Diz a lenda que uma batida no fundo, marcando o compasso, não vem de um metrônomo como parece, mas é o pé de Paul batendo num banquinho, onde foi colocado um microfone pra captar as batidas. O pássaro é um melro, o próprio pássaro preto, que faz seu canto melancólico no final e foi retirado de uma gravação de arquivo da EMI.
A parte do violão tem alguma dificuldade técnica, por ser um solo em contraponto com a melodia cantada e nós, adolescentes que estudávamos violão, fazíamos de tudo pra conseguir tocar e cantar ao mesmo tempo. Era muito difícil. Mas, de tanto que eu gostava da música, de tanto que ouvi e estudei, acabei conseguindo, com a ajuda de um amigo que fazia violão clássico. Aquilo foi uma façanha. Tocar Blackbird nas festas passou a ser minha marca registrada. Sempre que havia um violão por perto - e sempre havia - no meio daquele monte de músicas do Chico, do Vinícius, do Tom, no meio daqueles "barquinhos", "carolinas", "retratos em branco e preto", "waves" e "corcovados", alguém sempre pedia: "Toca Blackbird!!!" A turma parava pra ouvir. Era um sucesso porque a música é linda e impressionava. No meio da batidinha da bossa nova ela vinha com um caráter mais solene e o pessoal fazia um silêncio respeitoso, como as platéias de música erudita. Eu tocava e cantava com tanto prazer que a música parecia minha. E isso dava prestígio, o que fazia muito bem pro meu ego adolescente.
Os anos passaram e, já com uns quarenta e poucos anos, fui tocar numa banda de amigos, em que toco até hoje. Alguns são daquela época e me viram tocar Blackbird nas festinhas. A banda tem repertório de rock e pop dos anos sessenta e setenta. Um dia, resolvemos participar de um festival Beatles, promovido pelos fã-clubes daqui. Alguém lembrou do Blackbird e a música foi inscrita no repertório. Achei o máximo. Pensei comigo: "Vou arrasar", lembrando do sucesso que fazia na época em que tocava nas festinhas. E me preparei, o que não foi difícil, porque nunca mais esqueci da música. Apenas ensaiei pra ficar bem limpa e sonora, com uma execução fluida.
O repertório da apresentação tinha umas oito canções e Blackbird foi colocada bem no meio. Seria um momento de impacto, onde todos os componentes da banda sairiam do palco e eu, só com o violão, faria o número. Depois de umas três músicas agitadas, com as guitarras amplificadas, bateria, baixo e teclados, a entrada desse momento seria um contraste bonito e delicado, pra depois fazermos a segunda parte e terminarmos de maneira apoteótica com Help ou Back in The U.S.S.R. .
As três primeiras músicas foram muito bem. O público - todo de músicos das outras bandas - aplaudiu e gostou. Foi aí que a coisa aconteceu. De repente, me vi só, no centro do palco. Ninguém do meu lado. Os refletores jorravam uma luz forte e quente sobre a minha cabeça. O público desaparecera, engolido pela escuridão. E fez-se um silêncio aterrador. Fiquei alguns segundos parado, a cabeça vazia. Olhei para o lado e vi meus companheiros amontoados na coxia com uma cara meio ansiosa. Um deles fez sinal pra mim com a mão: "Vai...começa..." Tentei. Nada. Tentei outra vez. Um som começou a se ouvir, mas parecia vir de outro lugar. Via meus dedos percorrendo as cordas, mas fazia isso com uma dificuldade impressionante. Não conseguia comandar os movimentos que conhecia tão bem. A música foi se desenvolvendo mas cheia de tropeços, posições erradas, notas que não eram tocadas. A voz veio trêmula, baixa. Travei. Foram os dois minutos mais longos da minha vida. Quando dei o último acorde, o silêncio se fez de novo. A única coisa que pude fazer, foi dizer ao público: "Desculpem os erros. Foi muita emoção." O pessoal aplaudiu, mas eu saí dali arrasado. Como pode ter acontecido isso numa canção que eu tocava e cantava há tanto tempo? Que sabia mais do que de cor? Uma música que estava definitivamente incorporada em mim?
Até hoje, não tenho explicação lógica para o fato. E não quero arriscar as ilógicas. Porém, nunca mais toquei Blackbird em público. Só dentro do quarto, sozinho. E sai linda, linda. Como sempre saiu. Menos naquela noite...

8 comentários:

Edu disse...

Pra variar, sempre acho aqui os famosos escritos "agudos" e contundentes... Que tanto admiro. =]

No quarto, sozinho, certamente vc toca para sua melhor platéia. Você mesmo. E sem ela a gente não vive.

É ela que nos dá a noção de como conduzimos nosso show, que mudanças de repertório nós podemos fazer, que destino daremos a nossa fabulosa carreira... Eu me considero um "cantor das multidões" pelo volume dos meus pensamentos (minha platéia) e até pelas multiplas e delirantes personalidades. risos

Vou cantar pra vc então, aquela que considero a minha música. Não me pergunte porque considero "A MÚSICA". Não me remete a nenhum pensamento feliz ou triste, nenhuma lembrança amarga... Apenas me toca. Como nenhuma outra. Na voz de Fátima Guedes.

Absinto
Composição: Fátima Guedes

Eu bebo
Essas águas passadas
Como um vinho
Que não há de voltar
Do seu caminho
Pra acabar com essa sede
Que ainda sinto.
Um absinto
De mágoa, de insônia
E de saudade.
Como se enlouquecendo essa metade
Voltasse a metade
Que foi contigo
Eu bebo quando fico assim desesperada.
Quem me dera ficar apaixonada
Pra encontrar o outro lado
Do moinho.
Eu me embriago
Porque meu futuro
É muito vago.
Eu sinto a tua falta
Do meu lado,
Eu bebo tua ausência
De carinho.
Águas passadas...
Que vinho amargo,
Que gosto tão ruim.
Eu tenho sede,
Eu tenho medo
Do que será de mim.

PS.: Tive a honra e a felicidade de ouvi-la cantando ao vivo. Depois de quase me ajoelhar em frente ao palco do Sesc e pedir desesperadamente. Mas esse mico, poucos puderam presenciar. ;)

Abração

Edu

=]

Marina disse...

Nossa, eu teria dificuldade para eleger "a" música que me marcou também. Sofro para fazer rankings, top 5, top 10...Sempre fica algo de fora...
Mas músicas costumam marcar muito mesmo....tenho uma (ou mais) para cada viagem, para cada romance, para cada época da minha vida...

Anônimo disse...

Olha não sei qual a música mais representativa de minha vida, mas certamente passa por alguma coisa dos Carpenters como "Because you are in love", mas "Blackbird" é muito especial e vc a tornou desta forma, com sua virtuose ao violão. Até já fizemos dueto nela lembra?
Quero ver agora o solo no palco
Didú

Zeca disse...

Postei minhas músicas lá no blog da Alessandra. Todas elas do Tom Jobim, meu grande ídolo musical. Não conheço "Blackbird"... infelizmente! Tô precisando ouvir mais Beatles e começar a explorar o universal da MPNB, ou Música Popular Não Brasileira... essa coisa de ficar ouvindo só MPB está me fazendo perder muita coisa boa que tem por aí. Mas ainda sou jovem e há tempo prá (quase) tudo, não é mesmo?
E que saia justa esta lá no palco, hein? Bloqueio na frente da platéia não é fácil, não! Até hoje nunca tive um bloqueio desses, mas não sei se fico feliz ou preocupado com isto, afinal acho que se até hoje não ocorreu, a chance de que venha a ocorrer mais cedo ou mais tarde só aumenta.
Edu, concordo contigo, não existe platéia mais importante do que essa que você comentou. O problema é que ela é sempre a mais difícil de agradar, não há nada mais exigente do que essa platéia. Seríamos nós eternos infelizes ou insatisfeitos?
Tschüss, Zeca

Lia Noronha disse...

Paulo: obrigada pela carinhosa visita ao meu Cotidiano.
Abraços e bom feriado pr avc.

Amo a música Astronauta de Mármore...

Anônimo disse...

Não seja injusto com você mesmo! Sempre foi um prazer ouvi-lo cantar e tocar Blackbird. Com ou sem tropeços. Nem todos os dias podemos estar inspirados.
Bjo.

Paulo C. disse...

Como é bom ter amigos, hein Fê!!???...
Também te adoro...

Andréa disse...

Ai menino, que aflição, que angústia! Vc ia narrando o show e eu fui ficando apreensiva, só esperando um fiascão avassalador. E nem foi assim um fiascão vai, aposto que vc aumentou pra caramba com essa mania pefeccionista sua. Não gostaria que vc guardasse uma memória musical tão cheia de aflição, Paulo. Por que vc não a tenta outra vez em público? Quem sabe numa festinha de aniversário? Tenha certeza de que já é bem tarde e que já estão todos trêbados, inclusive você (tudo bem vá, você um pouco menos, só pra garantir). Tenta, vai? Depois conta pra gente. E outra coisa, Fê acertou em cheio, tem dia que não rola mesmo, não tem jeito.

Quanto as minhas, também tenho tanta música pra lembrar, boa e ruim... Música é uma viagem e Blackbird é demais, mesmo.

Beijo de blackbird fly, into the light of a dark black night.