quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

O PRESENTE QUE FALTOU

O bom velhinho apareceu... mas, não o reconheci.

A roupa era vermelha, como sempre. Mas, vermelha de sangue; estava todo ensanguentado. Cheio de hematomas pelo corpo magro, magérrimo...

Quando me abordou, levei um susto. Não percebi sua aproximação, no momento em que levava o lixo da ceia para fora. Numa voz incrivelmente forte para aquele homem alquebrado, disse bem alto: Feliz Natal! Em seguida soltou a gargalhada, grave e sonora: Ho!Ho!Ho!

Chegou pedindo um resto de comida da ceia e perguntou se tinha sobrado alguma coisa de lixo reciclável que ele pudesse levar para vender.

Disse que tinha apanhado de uns meninos de rua que cheiravam crack em um terreno baldio. Vieram roubar o pouco de pernil e tender que tinha recebido de uma senhora, num prato de papelão. No primeiro soco, a farofa se espalhou pela calçada. Só conseguiu engulir um pedaço de pêssego que mastigava. Sentiu alguma coisa dura raspar a garganta. Pensou que fosse um pedaço do caroço; em seguida, percebeu que era um fragmento do dente da frente, quebrado pelo chute que levou na boca, quando caiu. O lábio, inchado, sangrava.

Não tinha mais aquele corpanzil farto. Nem a face rosada e sorridente, como a vemos nas fotos. Era um rosto encovado, com olheiras e bochechas magras e penduradas. O olhar não brilhava... era triste, muito triste. A barba era farta, mas suja, de pelos escuros e engruvinhados.

No lugar do gorro vermelho, tinha um chapéu feito de jornal velho, dobrado. E o saco não era de cetim vermelho brilhante; era um saco de aniagem, puído. Estava vazio. Tinha apenas algumas latas de cerveja amassadas, algumas velhas panelas de alumínio sem cabo e umas poucas sacolas de plástico, dessas de supermercado.

Ao invés do trenó, ele mesmo puxava com dificuldade uma carrocinha de madeira carcomida, cheia de tranqueiras. Não tinha as renas a lhe acompanhar, mas um cão caquético não saía do seu lado e, cabeça e rabo abaixados, olhava prá cima com o mesmo olhar de súplica.

Olhei para aquele mendigo malcheiroso, dizendo-se Papai Noel, e filosofei um momento: Hoje, até os pedintes usam os ícones mercadológicos do Natal prá conseguir arrancar dinheiro da gente...

Num segundo, passaram pela minha cabeça os natais da minha infância: era reunir a família numerosa em torno de uma mesa farta e passar a noite rindo e brincando, enquanto os adultos conversavam. Depois, o esforço prá dormir, com toda a adrenalina da festa e a expectativa ansiosa de encontrar o presente no dia seguinte.

Aquele pensamento me deu raiva do cara. Sei lá, me senti invadido na minha fantasia infantil.

- Que Papai Noel, cara... olha prá isso... Não vai dizer essa merda prá uma criança! Precisa mentir prá pedir esmola?

O velho olhou prá mim, com uma altivez que não cabia ali.

-Paulo, eu sou assim mesmo. É você que me vê diferente.

Ele sabia meu nome!

-Como você sabe meu nome? Andou espionando meu lixo? Quer que eu chame a polícia? Quem é você?!

Olhei para os lados, tentando ver se algum comparsa daquele marginal se aproximava.

Calmamente, tirou do bolso da calça esfarrapada um papel velho e amassado. Abriu-o e estendeu em minha direção.

Ainda na mão dele, reconheci, de longe, um decalque que eu usava prá decorar meus trabalhos escolares.

Peguei o papel amarelado na mão e, já tremendo, reconheci minha caligrafia incerta dos oito anos. O decalque estava lá, no canto superior direito; mesmo muito gasto, ainda dava prá ver o escudo do meu time, com o mascote, símbolo do clube, encostado nele.

Era uma carta e começava com a data: São Paulo, 18 de dezembro de 1.964.

Em seguida, o destinatário: Querido Papai Noel...

Fui lendo o texto infantil; a cada palavra, eu voltava no tempo. Fazia os pedidos de brinquedos, dizia que eu tinha sido obediente e prometia ser bonzinho no ano seguinte e tirar boas notas. Aquelas coisas normais.

Mas o que me fez quase cair com uma vertigem, foi o último parágrafo.


E vou fazer um último pedido. Meu primo Tadeu me disse que você não existe. Que é invenção do meu pai e da minha mãe, prá eu ficar bonzinho. Que são eles que compram os presentes e escondem. Aí, ele me levou no quarto da minha mãe e botou uma cadeira prá eu subir perto do guarda-roupa. Quando eu subi, consegui ver lá em cima um presente. É um embrulho quadrado e grande e dá prá ver que é uma caixa de Autorama, porque dá pra ver escrito e eu olhei bem o papel, é um amarelo com árvores de natal e um monte de papai noel que nem você, umas figurinhas bem pequeninhas. Desci correndo da cadeira e disse pro meu primo que é mentira dele, que aquele não é o meu presente, que é você que vai trazer e saí chorando do quarto... Meu primo foi atrás me tirando o sarro, gritando que eu era bobo, que eu acreditava em você e eu gritei prá ele que eu acredito mesmo e que ele é que é babaca. Até falei um palavrão, chamei ele de filho da puta. Desculpa, mas é que eu fiquei com muita raiva, sabe. Então, Papai Noel, eu queria pedir prá você não deixar eu parar de acreditar em você. Então, eu queria pedir prá você não trazer o meu presente embrulhado naquele papel amarelo com árvores de natal e figurinhas de você. Embrulha num outro papel, prá eu provar pro Tadeu que você é de verdade, tá bom?


Nunca mais esqueci desse Natal. Eu queria tanto aquele Autorama. Não consegui dormir de tanta ansiedade. Mas, fingi. Pela fresta da porta, vi a sombra dos pés do meu pai chegando. Fechei os olhos e percebi pelo ruído do papel que ele colocava um embrulho na minha escrivaninha. Quando ele saiu, abri os olhos no escuro, com o coração disparado. Não conseguia ver nada. Não podia acender a luz. Fiquei ali o resto da noite, esperando, como nunca esperei um presente de natal antes. Acho que acabei dormindo de cansaço, porque lembro que acordei com minha mãe me chamando, com voz alegre, dizendo "acorda, olha o que o Papai Noel deixou prá você".

Meus pais não entenderam nada. Devem ter atribuído o choro convulsivo à minha emoção, mesmo antes de abrir o embrulho de papel amarelo com arvorezinhas de natal e pequenas figurinhas de papai noel. Eu nunca tinha desejado tanto um brinquedo. Era lógico que extravasasse tanta alegria. Minha mãe, ainda ficou um pouco desconfiada. Perguntou, depois de uns dois dias, se eu tinha mesmo ficado contente com o Autorama. Quando respondi que sim, com a face distante e inexpressiva, ela me olhou com aqueles olhos de mãe, que enxergam a alma dos filhos, e sorriu tristemente. Ela percebeu. Naquele ano, eu não ganhei meu presente de natal.


A primeira desilusão a gente nunca esquece. É ali, ainda pequenos, quando nos damos conta de que tanta gente mentiu prá nós - gente da nossa total e absoluta confiança - é nesse momento que perdemos para sempre a fé. Depois, conforme nosso raciocínio lógico vai amadurecendo, conseguimos explicar a atitude de todos e até nos rimos do fato. Porém, é um golpe mortal para nossa alma infantil. Fica ali plantada a semente da desconfiança, o embrião de todas as descrenças, o começo da desesperança, o germe do ceticismo.


Ainda divagando sobre isso e sobre aquele momento, com a carta envelhecida vacilando em minhas mãos, levantei os olhos e vi - juro que vi! - o mais lindo, gordo e rosado Papai Noel que jamais vira em todas as lojas de departamento de todos os meus natais até aquele de 1964. Ele sorria prá mim com dentes claros e brilhantes no meio da sua barba branquinha e fofa como algodão. Trazia um saco de cetim vermelho nas costas e tinha um trenó ao seu lado, puxado por oito renas e a nona, a líder, chamada Rodolfo, estava ao seu lado. Divertindo-se com meu espanto, sem dizer palavra, apontou para minhas mãos e para o papel, mal preso entre meus dedos frouxos. Olhei para baixo e vi a carta, que escrevera há tantos anos. Ela estava nova, em uma folha de papel branco com pauta azul, nem dobrada, nem amassada. E o decalque do escudo do meu time, ainda brilhava, como se tivesse acabado de ser aplicado.

Quando levantei a cabeça, vi um ponto vermelho luminoso no céu, deslocando-se, com certeza em direção ao norte.

Ouvi a voz do meu filho menor:

- Pai... você tá chorando? Ou tá rindo?

Respondi, enquanto guardava o papel no bolso da calça:

- Os dois, meu filho. Os dois... É que eu vi o Papai Noel!

E meu filho de oito anos comentou:

- Pô, pai, Papai Noel não existe, tá ligado? Digita lá no Google: "Papai Noel"... dá um monte de páginas com a história dele. É uma lenda! Não é verdade. Na Wikipedia fala que essa lenda vem de São Nicolau, que era um bispo ou um padre, no sec. IV, mas virou santo na Alemanha. Eu fiz um trabalho mó legal na escola sobre isso. Vem comigo que eu te mostro no computador.

Apertei com força o papel dentro do meu bolso e fui com meu filho consultar o Google, no seu notebook, presente de Natal.

5 comentários:

Roberto Martins disse...

Paulo, como sempre, você sabe tocar nossa alma, por tocar a sua própria. Que seus Natais sempre tenham papais Noéis (seria assim esse plural), sejam eles magros ou gordinhos, porque nós também o somos. Depende de quem olha...

Um beijo carinhoso do amigo

Beto

Anônimo disse...

Sempre vale a pena esperar por um texto seu.

Parabéns mais uma vez.

Gabi disse...

Paulo, você me embriaga de carinho, amor, amizade e cultura ! E sutileza e ... tantas coisas mais !
Você é fera, eu sou sua fazona e queria que você escrevesse cada vez mais pra eu ler !

'Fica ali plantada a semente da desconfiança, o embrião de todas as descrenças, o começo da desesperança, o germe do ceticismo.' ---> isso é fantastico, man !!!

Edu disse...

Meu caro Paulo,

Sumido, andei.
Agora voltei, sob nova alcunha:
http://entre-as-orelhas.blogspot.com
o arerê foi enterrado. Com pompa e circunstância.
Passa por lá.
Abraços
Edu

pé de Salsa disse...

Olá,
Sim Pai Natal existe sim !
Hoje eu encontrei mais uma prova quando encontrei o teu blog e, assim, apareceu esta história. Ele é espirito de amor, que em nós existe... fiquei feliz com este presente. E, nem é Natal, nem nada é apenas o dia 18/08/2015. Mas, eu estava necessitada de um presente, hoje que tudo estava tão triste.

Um beijo na onda do virtual
Rosária
rosariaserra@gmail.com