quinta-feira, 7 de setembro de 2006

PAIXÃO E MORTE DE UMA PAIXÃO

ATO I

O arfar trêmulo do peito que agoniza, produz o som resfolegante de quem correu quilômetros. No entanto ele está parado, sentado há horas na mesma posição, olhando através das paredes, além do horizonte, um horizonte de chumbo. A entrada do ar é difícil e chega a doer numa inspiração mais profunda, vã tentativa de fazer algum oxigênio carrear vida para dentro do corpo alquebrado e dolorido. Cabeça e ombros parecem suportar uma imensa pedra; o monólito negro da paixão esfacelada lhe curva a coluna. Dentro do peito oprimido, duas grandes mãos sufocam fortemente seu coração, procurando fazê-lo parar e, por isso, cada diástole não acontece, cada sístole bombeia apenas um fio de sangue escurecido pela respiração ineficaz. A pele, coberta de um suor pegajoso e frio, adquire um tom pálido, levemente azulado. Ele experimenta um ébrio torpor e, ao mesmo tempo, uma ansiedade explosiva e irrequieta; nas extremidades dos membros, um formigamento latejante quase os anestesia. Sente uma súbita vontade de gritar, vomitar bile, atirar vasos contra a parede. Mas o corpo entorpecido não esboça o mínimo movimento de um dedo mínimo. Não consegue nem mesmo levantar o braço para enxugar os grossos fios de lágrimas que escorrem dos olhos e das narinas, respingando seu colo ofegante. De vez em quando, pequenos tremores partem de dentro, de algum lugar e vão evoluindo em ondas centrífugas, atingindo a musculatura epidérmica, gerando arrepios e involuntárias contrações espasmódicas. Destes incontáveis epicentros, borbulham terremotos que sacodem o corpo semi-inerte, entregue à força primitiva de um vulcão em atividade máxima: sua pobre alma delira em convulsões e regurgita uma lava de fel e secreções incandescentes da paixão que se consome num fogo estrepitoso. Nunca pensou que tal emoção fosse sentida pelo estômago, mas é ali que as labaredas parecem produzir um ardor desesperado, dilacerante. Estranhamente, como que buscando um bálsamo, seu cérebro começa a resgatar, com incrível clareza, os instantes de paz e transcendência que vivera há - quanto? - tão pouco tempo. Dias, semanas talvez, o separam do paraíso em que estava e do inferno que agora vive... E...

ATO II

...Nunca sentira um estado de alma como aquele. Não havia diálogo, não havia idéias, não havia razão, decididamente inúteis. Apenas sensações...sonoras, olfativas, táteis. E - ao contrário de agora - uma ausência de peso, um levitar. Como se um campo antigravitacional estivesse permanentemente ligado. Fechara os olhos e chegara a ter miragens. Suas visões eram de nuvens passando em movimento lentíssimo sobre profundo e infinito azul, como um filme rodado em câmara lenta, mas sem o som das turbinas de um possível avião que lhe desse essa perspectiva visual. Como a bordo de um planador, seu espírito voava um vôo autônomo. Havia o silêncio reconfortante de um crepúsculo no campo e, bem longe - em tom baixo mas, perfeitamente audível - uma melodia não identificada e, no entanto - agora - inesquecível. Não , não era apenas uma melodia. Eram canções, muitas canções e vinham de um mesmo CD que rodava incessantemente, repetindo-se . Nenhum dos dois fazia qualquer menção de trocar o disco. Pouco importava. Era apenas música incidental, música de cena, música de fundo. A verdadeira música eram os sons. Baixos, baixíssimos, ouvidos apenas por eles, respeitando o silêncio que envolvia a sala penumbrosa de uma luz cálida. O ruído da inspiração do ar simulava uma suave brisa penetrando, lenta, minúsculas cavernas e assoviando baixinho quando formava pequeninos turbilhões nas concavidades que forçavam seu retorno. A expiração, ao contrário, vinha mais rápida e vigorosa; o jorro de ar, lançado de uma só vez, era, às vezes, acompanhado de mínima vibração das cordas vocais, criando uma nota pálida que fugia da garganta, como eco, pelos lábios entreabertos. De vez em quando, um gemido escapulia do peito de cada um e se transformava num sussurro - apenas a inútil tentativa de articular palavras que nunca saiam inteligíveis, por desnecessárias ou por serem abandonadas em algum desvão, no meio do caminho entre o coração, o cérebro e a língua, já enovelada com a outra, duas cobras do Paraíso perdidas no seu balé místico e pleno de significados e gozos. Falar prá que, se o silêncio destes ruídos dizia tudo o que era preciso? O farfalhar dos tecidos criavam imagens de folhas batidas pelo vento do Outono e traziam junto o seu clima de frescor, apenas para comprovar a tepidez dos corpos... E...

ATO III

...Um calor de forno crematório emana de seu interior, ao mesmo tempo em que a janela escancarada - no desvario de fugir da opressão - sopra um hálito gélido de ar, eriçando sua epiderme e trazendo-lhe tremores febris. Sua cabeça dói e pulsa na freqüência com que seu coração busca injetar sangue em seu cérebro fatigado de tanto procurar aquele paraíso perdido. Debalde; ele sabe disso. Sabe desesperadamente que sua memória não foi capaz de guardar nenhuma daquelas emoções.
Não estão no córtex, no lobo central ou no hipotálamo. Na verdade, não estão em lugar nenhum de seu corpo, nem ocultas em nenhuma fibra de seu coração ou encobertas em qualquer vão de seu sistema sensorial, embora todo ele tivesse tomado parte daqueles momentos.
Eis a terrível verdade! Aquela paixão imensa, sentida em cada miserável célula de seu corpo, percebida em cada órgão, manifesta em cada gota de suor, em cada lágrima de emoção vertida pelos olhos extasiados, em cada suave toque de seus dedos, aquela chama de luz intensíssima, aquele arrebatamento insensato e, ao mesmo tempo, pleno de paz, pertencia ao Tempo, este deus cruel e intolerante, que nos leva, implacável, todos os instantes vividos e por cujos dedos se esvai nossa vida lastimosa. Chorando, agora, um choro convulsivo e desesperado, ele percebe - na sua grande solidão e impotência - que jamais a terá de volta. Nunca mais aquela paz dos crepúsculos campesinos, nunca aquele silêncio melódico e farto de ruídos somente percebidos pelos corações apaixonados. Nem, tampouco, os perfumes, o calor, o toque eletrizado. E, nunca mais a viagem por entre as nuvens claras do céu da paixão, a viagem que pacifica o espírito e apascenta as almas apaixonadas. O deus Tempo, levou tudo e não deixou um registro sequer, nada que pudesse evocar um milésimo de segundo daquela sensação.

EPÍLOGO

Assim morre uma paixão. Assim como veio, do nada, trazida apenas pelo Tempo, deixada alguns instantes para que duas almas, escolhidas a esmo, pensem que também são deuses e que venceram os segredos da Vida e da Morte, conquistando a Eternidade. Não, minhas pobres almas desenganadas! Vivam como deuses estes mínimos e raros instantes, por que, logo, logo, perderão altitude e, de repente, em queda livre, vão estatelar-se, com estrondo terrível, sobre a sua dura e limitada humanidade. É-lhes permitido apenas...chorar.
E excretar - sob a forma dessa água salgada, temperada pelo fel do desengano - aquela porção perdida que o Tempo levou, numa espécie de morte a prestação.

7 comentários:

Andréa disse...

Ai a dor, as lágrimas doídas. Sabe o que inevitavelmente me vem à cabeça? Que quem nunca sentiu exatamente isso que vc acaba de esmiuçar, não sabe o que é viver de verdade. Não tem jeito, não sabe. É duro, mas acredito ser mais triste não se ter vivido isso. Meu coração tem um certo orgulho de suas cicatrizes. Não ter gravado na alma o exato tamanho do sofrimento pela morte da paixão- isso sim, é mais triste.
Lindo post.

Paulo C. disse...

Você deve pensar como o poeta Francisco Otaviano que:

"Quem passou pela vida em branca nuvem
E em plácido repouso adormeceu;
Quem não sentiu o frio da desgraça,
Quem passou pela vida e não sofreu,
Foi espectro de homem - não foi homem,
Só passou pela vida - não viveu."

Mas, vou lhe dizer, se as cicatrizes forem muitas e grandes, forma-se uma tal quantidade de tecido conjuntivo fibroso - próprio da reparação cicatricial - que o coração fica "endurecido". Não "sente" mais; não pulsa mais. Não se apaixona mais!

Marina disse...

Só uma coisa: quando eu for influente no mundo da literatura, tipo chefona numa editora, vou publicar seu livro, viu? beijos

Paulo C. disse...

Nada como ter amigos, hein,Má...
Adoro você também!

Anônimo disse...

Será que adquire-se a malícia de expressar-se bem com os anos? Espero que quando eu tiver a sua idade, daqui a alguns séculos, consiga dominar essa arte.

Bjo

Paulo C. disse...

A minha idade vc já tem Fê. Pelo menos na cabeça rabugenta...:-)

Anônimo disse...

Não. Nesse ponto estou a vários anos luz na sua frente. Correção, antes tarde do que nunca, para ir treinando: "Será que adquire-se", não... esqueci a famosa partícula atrativa.